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Jon Caramanica

Certa noite chuvosa na metade da década de 1990, quando Mariah Carey beijou Derek Jeter pela primeira vez –ensaiando um primeiro passo para se libertar de seu sufocante casamento com Tommy Mottola, o magnata da música que desempenhou papel crucial na construção de sua carreira—, a cantora voltou encharcada de chuva à sua limusine e ligou o rádio. O que ouviu foi “o beat sujo, perigoso e sexy” de “Shook Ones Pt. 2”, de Mobb Deep, uma das declarações mais essenciais de todos os tempos por parte do rap nova-iorquino, o tipo de canção desoladora que faz a temperatura cair 10 ou 20 graus em um instante.

A faixa ficou em sua memória quando ela voltou à casa palaciana que tinha construído com Mottola em Bedford, Nova York, escreve Carey em “The Meaning of Mariah Carey”, seu novo livro de memórias. No dia seguinte, ela começou a trabalhar em uma canção sobre uma amostra de “Shook Ones”, que contava a história de sua aventura romântica. “The Roof (Back in Time)” é uma composição bruta e sensual –Carey murmurando de um jeito cortante “eu te arranquei do real”. A canção era um produto de sua era, na qual pop, R&B e hip-hop começavam a se misturar mais livremente –um modelo que logo se tornaria a norma.

A faixa apareceu no quinto álbum de composições originais de Carey, “Butterfly”, de 1997, um momento propício em sua vida e música. Carey, a megaestrela de pop e soul com a mais impressionante voz de sua geração —Whitney Houston podia ser enquadrada em uma geração anterior— estava aprofundando suas conexões com o hip-hop no exato momento em que este estava se tornando o idioma comum do pop.

E a cantora, cujo pai é negro e a mãe é branca e sofreu ataques racistas em sua infância (“como o contrário de um primeiro beijo: a cada vez, um pedaço de minha pureza era arrancado do meu ser”), e que havia sido aconselhada insistentemente por seus parceiros na indústria da música a minimizar sua negritude, havia decidido anunciar com muita clareza quem ela era.

Para Carey, todos esses vetores –profissionais, pessoais, românticos, criativos, raciais, familiares– se entrecruzavam e muitas vezes sobrepunham, algo que acontecia desde a sua infância. “The Meaning of Mariah Carey” conta essa história de maneira vívida e emotiva, e em muitos trechos com franqueza notável.

São as memórias de uma artista determinada e absurdamente talentosa que tinha sua profissão como foco muito antes de começar a atrair os olhos e ouvidos do planeta, e também a história de uma jovem que era quase sempre bloqueada quanto tentava se sentir segura em sua identidade.

Seu talento musical –a única coisa firme– oferecia um raio de esperança em meio aos problemas familiares que marcaram sua infância. Também a ajudou a sobreviver ao traumático casamento com Mottola, que a mantinha para todos os efeitos prisioneira na casa deles no interior do estado de Nova York, cercada de seguranças, mesmo depois que ela se tornou uma das maiores estrelas pop do planeta.

Mas, embora a música fosse um refúgio para ela, era fonte de confusão para os outros. “A maioria das gravadoras não me compreendia”, escreve Carey sobre sua busca de um contrato de gravação em Nova York, quando ela estava começando. “Minha demo era mais diversificada do que a indústria da música aceitava naquele momento”.

Isso causou problemas com Mottola. “Tommy e eu éramos completamente diferentes, e a parte negra de mim causava confusão a ele”, escreve Carey. “Desde o momento em que Tommy me contratou, ele tentou lavar meu lado ‘urbano’ (ou seja, negro)”.

A trajetória da carreira de Carey demonstra a surdez absurda dessa abordagem. Ela tomou de empréstimo a forte convicção do soul para suas primeiras baladas de grande sucesso —“Don’t Wanna Cry”, “Hero”, “One Sweet Day”— e isso ajudou a salvá-las da banalidade. De todas as incursões das estrelas pop de sua geração ao hip-hop, a dela foi a mais convincente, a mais fluida e a mais apropriada.

O remix de “Fantasy”, em que ela colaborou com Ol’ Dirty Bastard em 1995, foi um

passo crucial para a absorção do hip-hop pelo pop. É mais um trabalho em que as tensões romântica, criativa e racial colidem –Carey mostrou a canção a Mottola e, escreve “vi o quanto ela manchava o nosso quarto branco e imaculado com o seu som sujo e divertido, exatamente o que eu procurava”. Mottola detestou o remix.

Quando Carey começou a trabalhar regularmente com produtores de hip-hop como Jermaine Dupri, ela passou a produzir alguns dos trabalhos mais criativos e bem-sucedidos de sua carreira, e se manteve no topo das paradas: “Always Be My Baby”, “We Belong Together”, “Heartbreaker”, “I Know What You Want”.

Foi como uma reviravolta completa e um triunfo para Carey, que sentia ansiedade sobre questões raciais desde a infância. A mãe dela havia sido praticamente alijada da família por se casar com um homem negro. No começo do livro, Carey dá a entender que seus irmãos mais velhos a desaprovavam por conta de sua compleição clara, e por suspeitarem de que ela se fazia passar por branca. Isso voltou a acontecer ao longo de toda sua vida, o que sempre incomodou a cantora.

Na verdade, em um jantar na casa de Giorgio Armani no qual Carey foi apresentada a Jeter, algumas semanas antes de eles terem seu encontro amoroso, surgiu uma conversa franca sobre a negritude de Carey ser ou não perceptível. Um dos motivos para que ela tivesse se sentido atraída por Jeter naquela noite foi ter descoberto que ele também era filho de um pai negro e mãe branca.

A escrita no livro –de Carey e Michaela Angela Davis– é cativante, um pouco frágil, decididamente humana. Carey é retratada como uma força espiritual, além de um prodígio musical –uma pessoa resiliente, autoconsciente e também divertida, ao seu modo majestoso. Carey afirma que “me recuso a reconhecer a passagem do tempo; sou conhecida por isso”, e a primeira sentença do texto é “um beijo do chef”.

Há muitas alfinetadas ao longo do livro. Carey também faz questão de omitir o nome de Jennifer Lopez, afirmando que “não a conheço”, ao discutir como Mottola tentou modelar a imagem de Lopez com base em Carey. Ela também mostra as garras ao falar de Madonna: “Eu era capaz de emular a famosa técnica de estúdio de Madonna, mas para isso só precisava da minha voz”.

Se Carey se apresenta como singular, que seja. Ela quase não tem pares em termos de sucesso comercial duradouro –é dona do maior número de primeiros lugares na parada Billboard exceto os Beatles. E se essa forma ruidosa e ostensiva de apresentação representa uma extensão de uma vida em que ela manteve uma pose rígida diante de circunstâncias horríveis, isso demonstra uma força de vontade impressionante.

Ela conta sobre sua primeira visita a um professor de interpretação, que pediu que visualizasse mentalmente um lugar seguro onde se sentisse protegida. Carey não tinha lugar algum para imaginar. “Eu me sentia como nada no meio de lugar nenhum. Sentia o piso duro do assoalho contra minhas costas, enquanto vasculhava o meu vazio”.

“The Meaning of Mariah Carey” se torna menos revelador à medida que a narrativa avança na vida de Carey. Uma seção dolorosa sobre o lançamento do filme e disco “Glitter”, em 2001, salta da manipulação praticada por pessoas da sua família a um centro de reabilitação, passando por maldades empresariais e mais, mas ainda assim parece frustrantemente ambígua.

Ela não menciona ter sido diagnosticada como portadora de distúrbio bipolar, naquela época, uma informação que só chegou ao conhecimento do público em 2018. E os capítulos finais do livro são apressados, correndo para incluir duetos entre divas, lembranças de Karl Lagerfeld e o casamento de oito anos entre Carey e Nick Cannon, com quem ela tem filhos gêmeos, Moroccan e Monroe.

O foco de Carey é resoluto –sua música é produto de sua vida. Uma capa protetora, quando necessário, e o lugar em que ela revelava silenciosamente as verdades sombrias, para quem estivesse interessado em ouvir, mesmo que as pessoas não fossem capazes de compreender tudo. (Ela enfeita diversas passagens do livro com letras dolorosas –compor é tão importante para Carey quanto cantar, e às vezes mais importante.)

cantora acaba de lançar “The Rarities”, uma coleção de canções inéditas que remontam a 1990 e ecoam o percurso que seu relato mapeia. Começando com “Here We Go Around Again” e seu som ao estilo Jackson 5, o disco avança para as baladas lentas de R&B que foram cruciais para o seu sucesso (“Everything Fades Aaway”), e se encaminha a uma influência maior do hip-hop a partir da metade dos anos 90 (“Slipping Away”). Muitas das canções são fortes, mas elas basicamente reforçam a história que Carey conta há muito tempo.

O documento mais revelador, porém, talvez seja o segundo disco que ela está lançando, “Live at the Tokyo Dome”, seu primeiro show no Japão, gravado em 1996. Ali temos Carey em seu pico –um deles ao menos– de autoridade vocal e fama pop. Ela está em forma fenomenal. “Emotions” é rápida e animadora; sua interpretação de “Don’t Wanna Cry” preserva o lado bombástico original mas com um pouco mais de pé no chão e algo de untuoso; “Vision of Love”, “Hero” e “Anytime You Need a Friend” são um trio catártico de músicas fortes, dançantes e graciosas.

Nos anos posteriores, Carey conseguiria escapar ao controle de Mottola, explorar mais o hip-hop, passar por seu primeiro grande fracasso (com “Glitter”) e entraria em colapso diante do escrutínio público. Sua fama continuou intacta, mas se tornou mais complicada e caótica. Visto por essa lente, e no contexto do que ela revela em suas memórias, seu desempenho no show parece uma despedida da maneira pela qual ela fazia as coisas no passado, a culminação de toda uma vida cantando por entre dentes semicerrados. Uma metamorfose estava para chegar.

Fonte: Folha De São Paulo

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