Há algumas décadas, estamos passando por uma trágica recessão de divas. Temos até algumas dúzias de baladeiras e estrelas do pop – algumas até de atuação sublime. Mas enquanto as Mileys da vida rasgam as páginas do manual das divas, outras como Beyoncé, Nicki Minaj e Adele simplesmente não possuem o potencial combinatório de grandes canções, temperamentos peculiares e comportamentos excêntricos em público, que marcaram as carreiras das grandiosas Barbra Streisand, Whitney Houston, Diana Ross e Celine Dion.
Na era de estrelismo megalomaníaco de reality show e celebridades da política – onde a fama, exposição e registro de marcas são manipulados com esperteza rumo ao lucro – o papel de diva, consagrado no arquétipo das celebridades, não é fácil de achar. As divas foram expostas antes mesmo da existência dos reality shows e da internet, mas tudo parecia feito sem poesia: uma intimidade exposta com o establishment público, formado pela fofoca e pela vulnerabilidade performática do estrelismo, que canaliza os bastidores obscuros e corações partidos que elas, através de performances incríveis, demonstram um por um com suas vozes que param o mundo.
Divas tem a fama de existirem em dificuldade maior, com alcances e habilidades vocais inacreditáveis de suas gargantas soprano para criar um personagem ainda mais histriônico – mas por causa da intimidade de cada uma, elas também são amadas.
Só que desde os anos 90, as divas resolveram recuar da cultura pop, dando lugar a celebridades que são famosas só por serem famosas. Uma habilidade e tanto, sem dúvida, mas longe do talento que lotava estádios com fãs, por exemplo. E muita dessa adoração por figuras como as Kardashians e as Real Housewives são pinceladas com um toque de repulsa, já que os realitys são um teatro de desprezo negociado com o espectador, onde se experimenta a pena por quem está na tela e auto-depreciação por se deixar levar por aquilo em primeiro lugar.
Felizmente, uma diva de verdade entrou em cena – e chegou para ser venerada. Mariah’s World, uma série documental especial de oito episódios do E!, é centrada na figura de nada menos que Mariah Carey. Ela, que sempre está predestinada a parecer polida e sempre inacreditavelmente apaixonada por si mesma em frente as câmeras. Uma das muitas razões que fazem os realitys funcionarem na TV é porque a maioria dos personagens esquecem as filmagens depois de uns dias e se acostumam (às vezes o álcool ajuda). Mariah nunca esquece! Apesar de sempre estar acompanhada por uma taça de vinho.
Ela sabe que está sendo gravada, falando para o público em um tom que é metade explanação e metade performance. A câmera a encara e ela encara de volta como um espelho, notando ângulos, luzes, cabelo, maquiagem, contato visual. Ela é meticulosamente auto-centrada, de um jeito que mescla insegurança e um apurado faro comercial. Enquanto, claro, está absolutamente impecável, daquele jeito artificial hollywoodiano, ela não tem o menor interesse de manter ilusões de naturalidade.
Também ajuda o fato de Mariah, através de seu puro charme, fazer o especial ficar sem objetividade de uma forma deliciosamente humana e engajada. O programa acompanha Mariah enquanto ela tenta planejar seu casamento e executar uma turnê internacional ao mesmo tempo, o que cria duas áreas diferentes para histórias. Mas quem seguiu os acontecimentos da vida dela sabe que 2016 já teve bastante drama, entre finalizar um divórcio, organizar um casório e cancelar sua turnê na América do Sul. Spoiler: o casamento de Mariah foi cancelado com direito a abusivo e escandaloso acordo pré-nupcial e justiça e tribunais envolvidos. Com isso em mente, parece um esforço infrutífero ver o programa, que começou a ser filmado muito antes de tudo acontecer.
É aí que reside a genialidade do programa e da personagem de Mariah. O lance é que Mariah’s World é uma piada, um deboche. Uma piada que Mariah faz e convida todo mundo a participar. O programa rola dentro dos padrões de reality shows, introduzindo personagens secundários que criam laços e narrativas para atingir suas metas, com os depoimentos entre um acontecimento ou outro, analisando os contextos. Mas nesse a Mariah senta com a câmera em pelo menos seis lounges chiques diferentes de sua mansão, onde a diva se deita casualmente com tudo milimetricamente pensado em roupas de matar, saltões de 15 centímetros, colares de diamantes e cintas liga. A pele dela brilha e seu cabelo esvoaça – é impressão ou ela fica mais trabalhada na ostentação a cada corte de vídeo?
Assisti-la é como estar preso num logo seguimento de alguma série de comédia. Tipo Arrested Development, quando o Gob não consegue parar de dizer a todos o quanto o seu terno custou, mas fica aumentando a cada vez o preço, numa tentativa desesperada de exceder as expectativas; a diferença é que Mariah Carey pode, de fato, exceder as expectativas. Logo no primeiro episódio, ela revire os olhos enquanto se prepara para pular nas águas do oceano. “Ai, que agonia! Estou no iate e tenho que ir nadar usando vestido e diamantes!”. Ela até se entrevista com um alter ego de diva, jogando champanhe no chão e debochando da ostentação. A direção também brinca dentro da piada, com zooms irônicos e afiados em momentos que merecem atenção. Sempre com ações imprevistas e com um certo tanquinho de um certo dançarino que sempre aparece, Mariah é o objeto de desejo da câmera e também a pessoa por trás dela. Em dado momento, ela abanadona uma cena com uma sacada de gênio: “Estou quebrando a quarta parede, tchau!”. Apenas um gostinho das risadas que ela esbanja – mesmo em cenas sérias, estabelecidas pela edição.
Isso que é o melhor. Mariah é o motivo do piada e a comediante que a conta, com a audiência pronta para oferecer um olhar cínico ao reality. Mariah’s World é um sarcasmo tão abrasivo do mundo das celebridades que é quase uma auto-paródia. Mariah fica ansiosa para explicar mais sobre ela mesma, mas ao mesmo tempo é capaz de notar o quão ridícula ela é. Numa cena, ela tenta explanar porque precisa de quatro pessoas para calçar seus sapatos – parte disso é um pedido de desculpas, a outra parte, pura brincadeira espirituosa. Ela tem uma personalidade forte o suficiente que não precisa se munir de drama excessivo ou apelo popular: tudo flui com facilidade, enquanto ela senta num trono e examina o trabalho da sua manicure. O entendimento dela de figura pública, vivendo com uma há décadas, é sombrio, cheio de nuances e habilidoso. Escorrega de forma cautelosa por debaixo da fortaleza moral da sociedade moderna, construída de estrelas do Instagram e YouTubers.
Honestamente, é cheio de alegria e diversão. Como todo reality, Mariah’s World tem suas frustrações e manipulações. Mas que servem com o lembrete do que é ser verdadeiramente enfeitiçado por uma diva: um mundo de contradições entre o poder e a fragilidade, tão cheias de si e poderosas, e ainda assim, sempre desmoronando.
O episódio de estreia termina com Mariah, vestida de preto, elegantemente se jogando num sofá branco chique em Glasgow (provavelmente exigido por ela durante a turnê). É o oposto de seus outros momentos jogadas em sofá. Nesse, os ângulos ainda não tinham sido testados, claramente. O cabelo dela não estava arrumado, as luzes não estavam ajustadas. Mas seu decote estava perfeito, assim como sua roupa. Por uns segundos, a câmera a observa repousado. Então, ela declara, com um braço cobrindo os olhos: “Isso é loucura!”. Ela se refere aos atrasos nos ensaios do show e os adiamentos do casamento e ao cansaço da turnê. Mas provavelmente ela também pensou que foi uma loucura que todas as pessoas e interessados se movimentaram arduamente para que ela ficasse ali, deitada sem motivo num sofá do meio da Escócia, com o cabelo perfeito na frente de operadores de câmera silenciosos. Sinceramente, ela tem razão.